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Então e eu?
Logo que desligou o telefone Roberto saiu do escritório a correr. Meteu-se no carro e foi ao encontro do filho. Aquela chamada poderia mesmo ter acabado com a vida do homem. Não tinha em atenção o trânsito, não via nada naquele momento, apenas uma linha reta que lhe indicava o caminho do Hospital Santa Maria. O semáforo estava vermelho mas não levou o homem a abrandar a sua marcha, pois ainda lhe faltavam uns bons dez quilómetros. Seguiu e passou. Chegando ao local, estacionou em cima de uma passadeira. Saiu a correr e deslocou-se às informações das urgências. – Queria saber de um rapaz que deu entrada aqui, teve um…
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Eu não sou filho de ninguém.
Afonso entrou no confessionário. Não sabia bem o que estava ali a fazer, apenas que alguma coisa o obrigara a ir para aquela igreja. – Perdoe-me padre porque pequei. Afonso não via a cara do homem que estava do outro lado. – Há quanto tempo não te confessas meu filho? – perguntou o padre. – Eu nunca me confessei… – Não foste criado na família cristã e sentiste necessidade e encontrar o caminho da salvação meu filho? – Deve ser mais ou menos isso senhor! Mas agradeço que se cale e me escute! É para isso que lhe pagam! – Mas meu filho… – Cale-se senhor… eu não sou filho…
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A sombra de mim
O último paciente saiu. Um homem de meia-idade, provavelmente a mesma do doutor. Não deveria ter mais de cinquenta anos. Doutor Castro estava visivelmente cansado. Todo o dia a escutar, todo dia a tentar aconselhar. Foram dez pacientes, dez pessoas, dez doentes, cada um com o dobro dos problemas do anterior. Castro parou para pensar. A sua secretária já tinha saído há algum tempo, eram já nove da noite. Estava sempre a dizer-lhe para ter em conta o tempo que passava com cada paciente, mas Castro não tinha coragem de os mandar embora. No fundo ele era um manto retalhado, constituído por pedaços dos seus pacientes. – Então e eu?…
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Gilberto fechou-se no quarto…
Gilberto fechou-se no quarto. Retirou a chave da fechadura, abriu a janela e atirou-a. Poisou a garrafa em cima da estante. Abriu a gaveta da mesinha e retirou um caderno, remexeu e lá encontrou uma esferográfica. Não sei muito bem por onde começar e muito menos o que escrever. Acho inúteis estas palavras mas cá vão. Ultimamente sinto que não existo. Sinto-me um pincel gasto que o Pintor terá que substituir… para nada presto. Ultimamente as conversas, as nossas conversas, resumem-se a contas, dinheiro e empréstimos. Enfim. Não quero desculpar-me de nada mas também não estou aqui para assumir responsabilidades. Maria acho que a culpa é tua. Apenas te limitaste…
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– Sou quem quiseres!
– Sou quem quiseres! – disse Rita ao homem com quem ia deitar-se. Era só mais um. Fechou a porta. Nada lhe era estranho uma vez que aquele espaço já tinha sido alugado por ela várias vezes. No fundo fazia parte do seu local de trabalho. Despiu o vestido de seda, azul turquesa, e esticou-o em cima da cadeira para não o amachucar. Passou as mãos pelo cabelo. A fragilidade feminina saía-lhe pelos poros da pele. Com movimentos subtis foi despindo as meias. O homem permanecia imóvel sentado na beira da cama daquele quarto alugado para o ato que se seguiria. Rita olhou-o. O fato muito bem engomado e a…
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Dia dos namorados
Era um dia muito especial para Andrade. Não só por se tratar do dia dos namorados mas, principalmente porque ia jantar com o seu menino. Sentia-se um adolescente excitado mas ao mesmo tempo com medo ou, vá lá, receio. Nos seus cinquenta e oito anos de idade nunca tinha feito tal coisa, sempre encobria aquilo que desejava. José, ou Zé como gostava de ser chamado, tinha apenas 22 anos de idade. Andrade tirou-o da rua. Quando o engatou o rapaz era um sem-abrigo que se prostituía para ganhar algum dinheiro para comer e para os seus vícios. Já passaram três anos mas Andrade ainda se lembrava perfeitamente daqueles olhos negros,…
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“Meu Deus, Meu Deus… porque me abandonaste?”
Fausto abriu os olhos. Dirigiu o olhar para o relógio que se encontrava amorficamente poisado em cima da cómoda do quarto e reparou serem cinco horas e 23 minutos. Conseguiu dormir quase duas horas seguidas. Já não havia parte do corpo que não sentisse dor. Os companheiros voltaram. Agarrou rapidamente o pano de cima da mesa-de-cabeceira e começou a vomitar. Os vómitos eram de tal ordem que sentia a alma ser-lhe arrancada pelas entranhas. Pararam. Limpou a boca a uma ponta do pano seca. O cheiro do vomitado incomodou-o um pouco mas… já estava habituado. Enrolou o pano e atirou-o para o chão. Com um simples gesto agarrou o comprimido…
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Os cinco sentidos do paraíso
Adão acordou bem-disposto. A noite foi sua amiga e certamente contribuiu para a inspiração que estava a sentir naquela manhã primaveril. Tomou um chá quente e mastigou duas bolachas. Estava ansioso por chegar ao seu estúdio, pegar numa tela nova e dar uso aos pincéis que já há vários meses estavam parados. Hoje sentia-se apto a produzir algo diferente. Queria abandonar aquela linha de pintar paisagens ou mesmo de fazer retratos por encomenda. Queria criar algo diferente. Sabia que para ganhar dinheiro tinha que continuar nos retratos mas hoje apercebeu-se que o curso de pintura que tirou em Belas Artes não o podia apenas limitar a ganhar dinheiro. Sentia-se artista…