A State of Mind

Os cinco sentidos do paraíso

Adão acordou bem-disposto. A noite foi sua amiga e certamente contribuiu para a inspiração que estava a sentir naquela manhã primaveril. Tomou um chá quente e mastigou duas bolachas. Estava ansioso por chegar ao seu estúdio, pegar numa tela nova e dar uso aos pincéis que já há vários meses estavam parados.

Hoje sentia-se apto a produzir algo diferente. Queria abandonar aquela linha de pintar paisagens ou mesmo de fazer retratos por encomenda. Queria criar algo diferente. Sabia que para ganhar dinheiro tinha que continuar nos retratos mas hoje apercebeu-se que o curso de pintura que tirou em Belas Artes não o podia apenas limitar a ganhar dinheiro. Sentia-se artista portanto tinha que dar a conhecer ao mundo a sua arte, não poderia apenas ficar-se pelos retratos pendurados na parede de uma qualquer casa. Bateu a porta de entrada e deslocou-se apressadamente para o anexo no fundo do quintal onde tinha o seu material.

Pegou numa tela nova e olhou-a com entusiasmo. Queria que esta daqui a uns dias espelhasse algo de diferente, algo de seu, um pouco da sua vida, da sua carne, da sua alma.

Com a tela já colocada no cavalete procurou as tintas e os pincéis. Estava convicto que iria sair dali algo de muito especial. Adão sentia que aquele era o seu momento, era o momento exato para demonstrar ao mundo todo o seu talento, toda a arte que sentia por dentro. Sentou-se num pequeno banco em frente da tela e começou a pintá-la mentalmente. Não sabia muito bem o que tirar da cabeça mas estava com uma vontade nova de transmitir o diferente. Olhando o vazio da tela começou a imaginar o paraíso com toda a calma e alegria que nele pudesse existir. Recordou a viagem de sonho que sempre desejou: Brasil, Rio de Janeiro, praia de Copacabana. Andava a adiar ente seu sonho há mais de dez anos. A carência monetária era a principal razão. A tela continuava vazia.

Continuou a sonhar com as palmeiras daquela maravilhosa praia. Toda aquela mistura de cores era o esplendor do paraíso. O azul do mar confundia-se lá no horizonte com o próprio céu. Bem lá no ponto de fuga existia a emergência do aprazimento celestial com o júbilo terreno. Os minúsculos biquínis coloridos das moças que iam desfilando alegremente pela praia entupiam os olhos do pintor com coloridas partículas que sambavam e se uniam formando um arco-íris. A tela continuava vazia.

O cheiro do mar juntamente com os milhentos aromas dos vários bronzeadores que a brisa se encarregava de misturar, transformava-se num doce e subtil perfume capaz de hipnotizar o mais exigente dos seres com o olfato apurado. Sentia mesmo a areia a aquecer-lhe a planta dos pés, bem como lhe aquecia o espírito através das palmas das mãos.

Seguia o som das gargalhadas, de todas as músicas e conversas das centenas de pessoas que aí se encontravam em festa, em suave divertimento, são esses que se tinha como destino o bater das ondas, onde com elas se misturavam e se transformavam em suave sinfonia confundida com uma música de embalar. Chegou mesmo a saborear o gosto de uma refrescante água de coco a escorrer-lhe pela garganta e embebedar-lhe o corpo alegre através das artérias, dando-lhe uma energia que, ao mesmo tempo que lhe tranquilizava a transparência da alma, lhe dava a vitalidade suficiente para viver. Avistava lá no alto o Cristo Redentor. Deus acima de todos a deliciar-se com a sua obra. A tela continuava vazia.

Adão sentia-se com vontade. Sentia-se capaz de oferecer aos seus olhos a mais nobre obra-prima que alguma vez estes puderam contemplar. Só nessa manhã, ao fim de tantos anos de pintura, aquele pseudo-pintor que ainda vivia na casa dos pais, se apercebeu que afinal o artista que pensava ser estava completamente desenquadrado com a verdadeira realidade em que vivia. Pegou nos pinceis e esteve vários minutos a observar a tela branca, a tirar medidas àquele pedaço de tecido branco. Compreendeu finalmente o que era o paraíso, o seu paraíso alegre.

Correu para o interior da habitação dos pais e subiu a escadaria que dava acesso ao primeiro andar. Sabia que estava sozinho. Com o pincel no bolso traseiro das calças de ganga já gastas, entrou no quarto dos pais e abriu todas as gavetas. Começou a recolher todos os objetos de valor que encontrava, brincos, pulseiras e colares da mãe, os anéis, o relógio de bolso do pai, que lhe tinha sido oferecido pelo seu avô, não foi exceção. Tudo era paraíso naquela hora. Tudo dava para atingir o paraíso. Correu novamente para o anexo. Aí pegou na carteira com os seus documentos pessoais, o passaporte, entrou no carro e acelerou para o centro da cidade a fim de fazer as suas vendas e comprar um bilhete de avião, só de ida, para o paraíso.

A tela continuou vazia.

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Imagem: Sérgio Moreira

Texto: Adão Baptista