A State of Mind

Páscoa Feliz…

Oito horas em ponto. Luísa já se encontrava sentada em frente à secretária dando as boas-vindas a mais um dia de trabalho. Temia a chegada do senhor engenheiro, sobretudo se este estivesse mal disposto. Começou por verificar as encomendas reunindo uma série de faturas a ver se tudo estava em ordem. Tinha ainda que preparar os ordenados dos trabalhadores.

Já se passaram oito anos e a moça continuava a aturar as barbaridades daquele patão barrigudo. Propositadamente vestia-se mal para ir trabalhar com o medo que ele tentasse alguma coisa fora do normal. Sonhava com o dia que pudesse esfregar-lhe a carta de despedimento na cara. Aquele insuportável ser era obra do demónio certamente. A moça apenas o suportava devido aos vinte contos do seu ordenado.  

Nos momentos mais calmos do dia de trabalho, quando o engenheiro não estava, Luísa sonhava com o seu casamento, linda a atravessar a igreja de braço dado com o seu pai. Interrompia, quase sempre, o sonho quando se lembrava que primeiro era necessário arranjar um namorado.

Ouviu a porta da entrada a bater.

– Bom dia senhor engenheiro. – disse respeitosamente a rapariga.

– Traz-me um café ao meu gabinete. – respondeu ele sem a olhar.

Luísa correu a fazer o café. Bateu à porta e lá lhe colocou o café em cima da secretária sem lhe dirigir uma palavra. Saiu fechando novamente a porta.

Ainda não se tinha sentado e ouviu os gritos vindos do gabinete:

– Luísa! Luísa…

– Sim senhor engenheiro!

– Onde estão as folhas de pagamento dos trabalhadores para eu assinar? Amanhã não estou e tenho que as assinar hoje! Ainda não fizeste a porcaria das folhas?

– Mas senhor engenheiro, hoje ainda é dia um e estou à espera da folha de presenças do mês dos dois…

– Não quero saber de nada disso! Tenho que assiná-las hoje que amanhã vou para o Algarve. Desenrasca-te que é para isso que te pago.

– Sim senhor vou tentar tratar disso…

– Tentar não! Quero isso hoje e ainda de manhã.

A rapariga correu ao estaleiro a ver se encontrava ainda algum dos dois encarregados de obra.

– Senhor Paulo… Graças a Deus que o encontro! Preciso sem falta da folha de horas do mês passado. Tenho que preparar os ordenados…

– Tanta pressa? – disse o homem – Pega está preenchida.

– Senhor Paulo, preciso ainda que me faça um favor. Eu não sei como falar com o senhor Afonso mas precisava também da folha da equipa dele! Não dava para o senhor Paulo passar…

– Eu passo lá agora. Está bem assim? Por ti eu faço tudo cara linda!

A moça sorriu envergonhada.

– Obrigado senhor Paulo!

Estava a tratar dos ordenados dos trabalhadores da equipa do senhor Paulo quando o telefone tocou.

– Construções Baltazar Ltd.ª bom dia.

– É o Afonso.

– Bom dia senhor Afonso, como está? O senhor Paulo falou consigo?

– Falou mas ainda não tenho a folha pronta! – Luísa gelou.

– Mas…

– Espera! Também nenhum rapaz faltou o mês passado portanto é fácil fazeres as contas.

– Muito obrigado senhor Afonso! Continuação e um bom dia.

Ainda não era meio-dia e a rapariga já batia à porta do gabinete do engenheiro.

– Dá licença senhor engenheiro? Estão aqui as folhas dos operários para o senhor assinar.

– Poisa aí.

Treze horas e já ela estava novamente em frente à secretária. À medida eu o tempo passava, ela lutava contra ele para fazer todas as tarefas daquele dia. Pressentiu a chegada do engenheiro. Trazia companhia.

– Boa tarde. – disse o acompanhante quando avistou a rapariga.

– Boa tarde… – respondeu ela.

Os dois homens deslocaram-se para o gabinete do engenheiro.

– Luísa…

– Sim senhor engenheiro!

– Traz a garrafa de whisky e dois copos limpos! – Ela correu a buscar a garrafa e dois copos que estavam guardados no armário.

– Com licença…

– Mas o que é isto? Os copos estão todos porcos rapariga! Que andas a fazer? Para que te pago?

O acompanhante olhou Luísa com uma certa pena.

– Ouve lá Baltazar, não achas que estás a ser um pouco bruto com a moça?

– Bruto senhor vereador? Isto é uma mosca morta que aqui tenho! Só anda aqui para levar os vinte contos que lhe pago! Deixe a minha pequena acabar a escola que o senhor vereador vê para onde ela vai… olho da rua logo!

– Ó Baltazar não diga isso…

– Ai digo digo… quem quer uma mosca morta destas? O senhor vereador já olhou bem para a figura dela? Ninguém pega naquilo! Até dá mau aspeto à empresa! O que ela precisa sei eu… – soltou uma valente gargalhada – Mas também com aquela cara!

Luísa encontrava-se na casa de banho a passar os copos por água. Ouviu cada palavra que o homem proferiu. As mesmas ganharam forma de lanças a cravarem-se-lhe no mais íntimo da sua dignidade.

– Filho da puta… – sussurrou ela. Engoliu em seco. Respirou fundo e entrou no gabinete. A imagem daquele barrigudo de cara roliça com os dentes amarelados a destacarem-se naquele feio rosto apareceu na frente da moça. Ainda como que a horrível imagem não fosse suficiente, o bárbaro encontrava-se naquele momento a coçar os genitais.

– Aqui estão os copos senhor engenheiro. – saiu e fechou a porta.

Sentou-se e agarrou-se novamente ao trabalho como forma de escape para esquecer as palavras do homem. Passou mais de hora e meia e finalmente abandonaram o gabinete. O engenheiro trazia o casaco vestido, sinal de que também iria sair.

– Esta obra tem que ser nossa doutor! Diga lá na Câmara que ninguém faz melhores orçamentos que eu! Depois nós cá conversamos. O senhor já sabe que comigo não fica mal!

– O senhor engenheiro ainda volta? – perguntou Luísa. A resposta foi levar com a porta na cara.

Faltavam dez minutos para as dezoito horas. Luísa foi à arrecadação buscar a vassoura. Quando se preparava para começar a varrer o gabinete do engenheiro, já depois de ter despejado os caixotes do lixo, reparou que as folhas de pagamento dos operários ainda não tinham sido assinadas. Certamente o engenheiro ainda regressaria ao gabinete para as assinar.

Já passavam das dezoito horas e Luísa fechou a porta do escritório. Com a chave na mão ansiava sentar-se ao volante do seu Renault cinco e ligar o rádio. Assim foi.

Sete horas da manhã. Luísa já se encontrava novamente ao volante do seu carro a fazer o percurso para o seu inferno. Contudo estava mais alegre por vários motivos: no dia seguinte era o feriado de sexta-feira santa; o bronco do patrão estava fora e também porque era dia de pagamento e, ao final da tarde, uma série de rapazes, por ventura bem jeitosos, iriam passar pelo escritório para receber. A música que tocava na rádio era do seu agrado… porém foi interrompida pelo locutor…

– Grave acidente na A1 em direção… – desligou o rádio.

– Porcaria! Logo nesta música que tanto gosto! Não têm respeito nenhum pelos ouvintes.

Abriu a porta e correu ao gabinete para trazer as folhas assinadas e colocar cada uma no respetivo envelope com o dinheiro. Ficou em pânico quando viu que as mesmas não tinham sido assinadas. Tranquilizou-se com a ideia do engenheiro passar ainda no gabinete.

Eram já dez horas e nada. O telefone tocou.

– Construções Baltazar Ltd.ª bom dia.

– Bom dia Luísa é o Paulo.

– Ai senhor Paulo ainda bem que liga! O senhor engenheiro foi passar a Páscoa ao Algarve com a mulher e a filha e não assinou as folhas de pagamento dos rapazes…

– Não assinou nem vai assinar. Teve um acidente na A1 e morreu ele e a família!

– Ai Meu Deus! – gritou a moça – E agora?

– Agora cara linda… olha, uma Páscoa feliz!

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Imagem: Sérgio Moreira

Texto: Adão Baptista