A State of Mind

Tu fazes-me tanta falta…

Irene já se encontrava sentada na sua pedra. Passaram-se quase dois anos desde a tragédia do desabamento nas minas do Pejão, mas a mulher quase todos os dias, à mesma hora, estava ali não se sabia muito bem a fazer o quê, a falar com quem ou mesmo a rezar. Sentada em frente ao portão que dava acesso à boca da mina, esperava até às seis da tarde onde tantas vezes esperou o marido, sobretudo quando este saía de madrugada sem guarda-chuva.

Jerónimo só conheceu uma entidade patronal. Começou a trabalhar com doze anos de idade, acabou por falecer com trinta e seis, passando portanto dois terços da sua vida nas galerias das minas de carvão a escavar.

Irene ainda recordava o dia em que casaram, um sábado na missa das cinco da tarde, dia sete de abril, apenas teve o domingo de descanso. Segunda-feira teve que levantar-se às seis da manhã para preparar o almoço para o marido levar para as minas.

– Sabes Jômo… (era assim que Irene tratava o marido) o Francisco anda muito rezingão! Não sei o que se passa mas reclama por tudo e por nada. Estou mortinha que ele acabe a escola para o pôr a aprender uma arte. Sabes, pensei em falar com o Quim carpinteiro a ver se ele o deixa ir para lá aprender a arte. Sei que não pode pagar-lhe muito mas sempre é algum… e carpinteiro é um bom ofício! Eu não quero que o pequeno vá para as obras. Assim tão franzino… com aquele problema nos ossos! Aqui para as minas é que nem pensar! Ainda lhe acontece o mesmo que a ti! – Irene começou a chorar compulsivamente.

– Ai Jômo… fazes-me tanta falta homem de Deus! Se pelo menos eu te pudesse ter feito um enterro meu homem! Mas assim, venho para aqui para a porta pareço uma louca… – limpou os olhos com os dedos.

Irene parou silenciosa e olhou por breves instantes para o portão. As Minas do Couto Mineiro no Pejão, em Castelo de Paiva eram o sustento para a maioria das famílias daquelas redondezas, para Irene eram o “demónio” que lhe engoliu o bem mais precioso sem o cuspir.

– A pequena também anda a comer mais mal. Não sei se é por causa e estar quase a ser mulher… não sei. Depois vou ter que falar com ela, pois… explicar-lhe as coisas, senão a pequena ainda nos apanha um susto! Sabes, está a ser um bocado difícil criá-los sozinha. Não estou a queixar-me do dinheiro porque o que recebi do seguro dá bem para vivermos. É mais a falta que fazes. Às vezes o rapaz anda de uma maneira que precisava era de umas boas palmadas do pai, ou então de umas palavras que só vós homens sabeis falar… fazes-nos tanta falta meu homem.

Olhou na direção do rio Douro a mirar dois barcos que passavam.

– Ainda hoje de manhã senti a tua falta… – começou a rir-se – … sabes, depois de me lavar, reparei que tinha as unhas dos pés grandes. – riu novamente – Como eu gostava quando tu me cortavas as unhas dos pés! Tinhas mesmo jeito. E depois fazias-me cócegas na sola dos pés… – o riso transformou-se em choro compulsivo.

Irene sentia um aperto tão forte no peito, uma dor tão abafada que seu coração parecia querer explodir de tanto aperto.

– Estou aqui a desabafar como uma tola… Sabes Jômo para a semana mato o porco. Vem aí tempo mais fresco para curar a carne ao fumo. Ando é um bocado receosa, nem sei se te devia contar isto. Mas olha foi para isso que nos casamos. Não podem haver segredos entre nós. Sabes o Armando, o porqueiro que costuma matar-nos o porco, da última vez que lá foi matar o porco virou-se para mim com uma conversa que não gostei nada. Olha que ele virou-se para mim e disse ao caso que eu ainda era uma rapariga nova que devia tirar o luto. Disse ele que o luto não traz ninguém de volta. Disse também que eu era uma mulher jeitosa e bonita que devia arranjar alguém e tocar a vida para a frente.

Já viste o descaramento dele Jômo? Eu é que tenho respeito senão mandava-o à merda com a conversa. Se tivesse alguém para matar o porco… mas por estas bandas é só ele. Mas desta vez se ele me vem com a mesma conversa eu juro pela tua alma que lhe tiro a faca dos porcos da mão e o corro porta fora!

Enquanto Irene continuava o seu monólogo a sirene das minas anunciaram as seis da tarde, hora de final do turno. Os mineiros começaram a chegar à superfície encaminhando-se para o portão da saída. Iam subindo pela chamada jaula, percorrendo o túnel até verem finalmente a luz do sol na boca da mina. Vindos do “centro da terra” apareciam com um ar abatidamente cansado, dando a sensação de se tratar de homens com pés de rocha. À medida que passavam pela viúva iam acenando com a cabeça respeitosamente. A presença, quase diária, da mulher sentada na pedra fazia-os recordar a tragédia.

– Os teus colegas já se vão embora Jômo. Eu também tenho que ir que não tarda os pequenos também chegam da escola. Amanhã não sei se cá posso vir que tenho consulta no posto médico por causa daquelas dores de cabeça. Sabes a médica vai ver os exames que me mandou fazer. Ainda vai dizer que eu estou tola… – soltou uma triste gargalhada.

– Quem me dera levar-te para casa comigo meu homem. Deus quis que ficasses aí debaixo para sempre a guardar as minas… – chorou novamente – juro-te que o que mais quero é ter os pequenos criados para poder ir ter contigo! Depois vamos ficar juntos para sempre. Tu fazes-me tanta falta meu homem…

Irene encaminhou-se para o carreiro, pelo meio do pinhal, que lhe encurtava o caminho para casa.

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Imagem: Sérgio Moreira

Texto: Adão Baptista