A alma em risco
O relógio da igreja já tinha badalado as nove da manhã. Apesar de espreitarem alguns raios de sol, o dia apresentava um tom acinzentado, remetendo-nos para o interior de uma cúpula melancólica e desgostosa, vazia de movimento. Tudo parecia falso naquela hora. O próprio cantar dos pássaros era estranho, certamente entoado por obrigação ou mesmo feito em playback. Nada batia certo. Naquela simples aldeia algo estava a acontecer, ou melhor, nada de novo acontecia.
O orvalho matinal abafava o respirar das plantas que suspiravam pela ausência de calor. As portas das casas estavam escrupulosamente cerradas, obrigavam-nos a construir a chave e, através da nossa imaginação, penetrar no interior das mesmas. A sombria obrigação de fazer o correto, aquilo que os pais transmitiram como sendo a vontade de Deus, levou a que alguns, poucos, habitantes desta pacata aldeia se levantassem para satisfizer a vontade desse Ser Superior. Estavam bem nos seus aposentos mas…
Sábado. O amanhecer ofereceu-nos um funeral. O ar triste ostentado no rosto dos poucos presentes era mera falsidade.
– Coitado, o vinho roubou-lhe a vida… – disse alguém lá ao fundo.
– Ai o vinho… ele bebia era outras coisas mais fortes, se fosse só o vinho ele ainda estava vivo! – retorquiu o senhor inteligência que aí também se encontrava.
– Desde que a mulher o deixou foi um descalabro! Ainda bem que não tinham filhos senão hoje eram uns desgraçadinhos!
O interesse da conversa resumia-se a este falso lamento dos poucos que, quase por obrigação, se encontravam no funeral do Manel Careca. Homens com os cigarros acesos iam pondo a conversa em dia no exterior da capela mortuária. Relembravam momentos vividos na juventude rindo baixinho das peripécias recordadas.
– Lembras-te Tono da Famel azul que eu tinha? Aquilo é que andava!
– E aquela gaja que vinha cá nas férias passar uns dias a casa da tia? Aquela que era sobrinha do doutor Miro… Jesus, aquilo é que era boa! Tinha umas mamas… – gargalhada conjunta – nunca mais ninguém ouviu falar dela!
Assim se matava o tempo no exterior da capela. Já no interior, de quando em vez, lá se ouvia mais um lamento à morte do pobre Manel.
– Porque está o caixão fechado? – perguntou Gina Carucha.
– Parece que os médicos disseram que era melhor porque ele já estava todo podre por dentro!
– Quem lhe disse tia Rosa?
– Foi aquela lá de cima que vive perto da fábrica… aquela… olha não me vem à ideia agora o nome.
– Era um rapaz novo… também não teve sorte na vida! – lamentou alguém.
– Sorte? Foi sempre um tolo que só fazia disparates… sempre agarrado à viola a dizer que queria ser cantor! Nunca quis nada com o trabalho, chegou a andar na fábrica e despediu-se! Viveu sempre na mangalaça! Acho até que por ter levado essa vida mundana tem a alma em risco na presença de Deus! – concluiu a tia Rosa.
– Ele não tem uma irmã lá para o estrangeiro? – perguntou alguém.
– Tem na Inglaterra perto da minha irmã Laurinda. Podia tê-lo levado para lá para se curar…
– Lá também há vinho! – Riram todas baixinho.
– Mas pelo menos estava perto dela para o ajudar e não andava para aí a meter impressão às pessoas. Cada um tem que tomar conta dos seus! É para isso que aqui estamos.
– Eu já não o via há algum tempo…
– Eu ainda o vi na semana passada bêbado como um carro!
As conversas iam-se resumindo a estas saudosas recordações de uma personalidade, sem dúvida, muito benquista na sua comunidade. Entre um olhar para o relógio e um assuar do nariz, o tempo corria na lentidão rápida que era exigida pelos presentes. Sempre que uma personagem nova pisava o interior da capela mortuária, lá eram, minuciosamente, colocadas as máscaras fúnebres repletas de sentimentos falsos de dor e respeito. Estávamos sem dúvida na presença da mais valiosa peça caligrafada em parceria por Ésquilo e Sófocles que, juntando as suas mais requintadas sabedorias, escreveram este fragmento trágico-comediante. Porém meus senhores, não estava a ser apresentada nas festas em honra a Dionísio, mas sim a ser vivida num último recordar de um elementar Manel Careca que, tal como este deus, escolhera o vinho e as festas como alimento da sua alma em vida.
Na plenitude das suas faculdades os presentes julgavam o defunto na sua presença. Este, fechado dentro daquele caixote de madeira, não tinha o direito a defesa, pois além de fechado estava morto. Quem disse? Eles.
Este adorável tribunal de Osíris não necessitava da presença dos quarenta e dois Deuses, muito menos do próprio Osíris, não faltava ali quem julgasse. Antes mesmo que o coração do morto fosse pesado, eis que chegou o padre na companhia do cangalheiro. Todos se levantaram à passagem do senhor prior para o altar. Os rostos repletos de cínica tristeza observavam e eram observados. O orador deu início à cerimónia.
– Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
– Ámen.
– Irmãos, estamos aqui reunidos para celebrar o funeral deste nosso irmão que, por vontade de Deus, partiu para o Reino dos Céus. Deus sabe o que faz! Desde que foi atropelado, não mais voltou do sono em que se encontrava. Lutou mais de dois meses com a morte, apesar de estar em coma, mas a vontade de Deus foi chamá-lo para a sua companhia, libertando a sua alma do sofrimento em que seu corpo se encontrava.
Oremos…
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Imagem: Sérgio Moreira
Texto: Adão Baptista