A State of Mind

Tudo era culpa

Luís chorava. Pedro olhava, ora para o berço, ora para a porta do quarto.

– Pronto bebé a mãe já vem.

Amarrado àquela cadeira de rodas sentia-se completamente incapaz, completamente impotente, um verdadeiro inútil. Começava a ficar nervoso. Não avistava Cláudia nem sequer ouvia os seus passos pelo corredor. Não queria chamá-la pois sabia perfeitamente que se não vinha tinha um motivo. Estava certamente a fazer o jantar ou a meter a roupa na máquina ou…

– Foda-se! – praguejou ele. O seu sistema nervoso estava já a alterar-se ao ponto da sua respiração ficar completamente alterada.

Por muito que se esforçasse não conseguia deixar e sentir raiva, quer por Cláudia demorar em vir socorrê-los, quer por ter-se colocado naquela situação de tetraplégico. Luís gritava desesperadamente. Do corredor chegava o som forte de uma panela a bater em algo na cozinha.

– Foda-se ela é surda? Sou mesmo um filho da puta! Quem é o cabrão que deixa a mulher grávida de nove meses em casa e pega no carro para ir para o pinhal fazer rali? Depois tive o castigo de Deus…

Pedro não conseguia libertar-se daquela culpa que o atormentava durante as vinte e quatro horas sombrias que passava cada dia. Apenas conseguia abstrair-se dessa culpa durante a hora e meia matinal em que fazia fisioterapia. Achava que a culpa do acidente era sua, que foi Deus que o castigou e lhe soltou as molas do amortecedor por ter deixado a esposa sozinha em casa.

Luís estava quase sem fôlego.

– Cláudia… – gritou Pedro. Ninguém respondeu.

Estava confuso e com forte dor de cabeça. Revia o acidente passar-lhe na frente dos olhos vezes sem conta. Movia a cabeça a grande velocidade, era a única parte do corpo que conseguia mexer. Deixou cair os óculos.

– Meu Deus… ela abandonou-nos! – olhou o berço do filho – Ela abandonou-nos filhinho! Quando alguém aqui vier dar connosco já estaremos mortos.

O suor escorria-lhe pelo rosto.

– Cláudia… Cláudia… – fartava-se de chamar sem que alguém respondesse. O líquido mucoso que lhe saía pelas narinas ia-se misturando com as lágrimas que lhe escorriam pelas faces.

O telefone tocou. Ninguém atendeu. Tocou novamente… Pedro teve a certeza de que tinha sido abandonado. Ela não aguentou tal fardo. Luís continuava a chorar. Nesse mesmo instante a cabeça de Pedro caiu sobre o tronco… desmaiou. O silêncio repentino invadiu o quarto.

Pedro abriu os olhos. A primeira imagem que enxergou foi o candeeiro pendurado no teto. Ouviu uns múrmuros.

– Ele acordou… – alguém disse. Ouviu chamar o seu nome. Virou um pouco a cabeça e viu o rosto da sua sogra.

– O menino? – perguntou ele.

– A tua irmã está a dar-lhe o biberão… ele está bem, descansa!

– A minha irmã? Que está ela aqui a fazer? Que faz aqui você? A Cláudia?

– Sabes… – a mulher começou a chorar intensamente. Pedro sentiu medo.

– Eu telefonei várias vezes cá para casa e ela não atendeu, fiquei preocupada e vim cá. Bati à porta e ninguém abriu, como ouvia o menino a gritar pedi ao vizinho e arrombamos a porta de entrada…

– A Cláudia partiu? Perguntou ele.

– Sim meu menino, ela partiu, não aguentou mais…

A senhora deixou-se cair para cima da cama e chorou.

– Quando entrei vim a correr ao quarto, estavas desmaiado e o menino aos gritos. O senhor Júlio deitou-te na cama e eu peguei no menino… quando fui à cozinha para fazer-lhe o biberão… lá estava a minha menina deitada no chão sem vida! – gritou.

Pedro sentiu dor no corpo todo. Parecia que estavam a extrair-lhe todos os ossos do corpo pelas cavidades nasais. Já nem raiva sentia. Tudo era culpa.

– Sabes, o médico legista, quando veio levantar o corpo, disse que deve ter sido um derrame cerebral. Sabes que ela era diabética e ultimamente, coitadinha, não se cuidava… era muita coisa que acabava sempre por deixar a sua saúde para último lugar.

Pedro cerrou os olhos. Sentia-se ainda mais culpado. Entendia agora que o castigo que Deus lhe enviara era muito maior que aquilo que imaginava. A sua Cláudia, sua companheira… aquela mulher estava agora tão distante que não mais poderia dar-lhe um beijo. A sua guerreira que era tão boa a curar as feridas dos outros… e ninguém curou a sua.

– Pedro… Pedro! – uma mão suave deslizou sobre seu rosto. A voz não lhe era estranha.

– Acorda meu homem… – Pedro abriu os olhos. Olhou o sorriso de Cláudia.

– Anda, levanta-te que está o Francisco à porta à tua espera. Vocês combinaram irem para o pinhal fazer rali…

Pedro estava imóvel levantou a mão esquerda e acariciou a barriga da mulher.

– Diz ao Francisco que não vou.

Cláudia olhou o marido, abanou a cabeça e sorriu. Antes que ela saísse do quarto ele perguntou-lhe:

– O menino deu muitos pontapés esta noite?

– Menino? Então não combinámos não saber o sexo antes do nascimento?

– Eu cá sei que é um rapaz!

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Imagem: Sérgio Moreira

Texto: Adão Baptista