A State of Mind

Salta Eugénia, salta…

 Eugénia correu para junto do rádio. Ligou-o e procurou uma emissora que passasse música do seu agrado.

– Esta música hoje em dia é uma autêntica porcaria! Só barulho… depois dizem que é Dance ou lá como lhe chamam… isto serve lá para dançar? Ai meu Deus que saudades eu tenho de dançar uma valsa! Como eu gostava de dançar uma boa valsa com o meu Moreira, que Deus o tenha. Ele dançava tão bem a valsa, depois que partiu não mais dancei! Aqueles bailes…

A viúva recordava os momentos mais felizes da sua juventude. O tempo, bem como a demência que a atacara, encarregaram-se de lhe apagar algumas memórias, contudo Eugénia ainda ia mantendo alguns flashes dessas alegrias passadas.

Nos momentos mais sóbrios da sua viuvez, Eugénia lamentava o facto de não ter filhos. A solidão por minutos assombrava-a mas, o facto de existir um muro alto que sempre lhe emparedava a realidade da fantasia, o passado do presente, fazia com que esses retalhos de nostalgia fossem breves.

Estava já a ficar aborrecida porque nenhuma música era do seu agrado. O velho rádio, presente de casamento oferecido pela sua prima Aurora, também esta já desaparecida do mundo dos vivos, ainda funcionava às mil maravilhas, apenas não dava boa música.

Eugénia sentou-se no cadeirão da sala. A sua gata, única companheira dos últimos anos, esfregava-se nas pernas da mulher mas esta não lhe prestava a mínima atenção.

Levantou-se. Deu um pontapé na gata.

– Sai daqui bicha malvada!

Deslocou-se à cozinha e pôs a chaleira no fogão a aquecer água. Abriu a cristaleira e retirou o bule e duas chávenas, peças que guardava ainda do seu enxoval. Colocou a água quente no bule e preparou-se para fazer a infusão de tília.

– Moreira… Moreira está na hora do chá! Onde raio se meteu o homem? – deu um gole de chá.

Admirada e com um ar estúpido a gata olhava-a sempre com desconfiança.

– Anda cá Mimi salta para o meu colo. – pegou na gata e começou a afagar-lhe o pelo. – Somos amigas Mimi, nós somos amigas…

Eram três horas da tarde e o locutor deu início ao noticiário.

– Boa tarde. O presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, propôs a criação de um escudo antimísseis. Este escudo usará raios laser e micro-ondas para intercetar mísseis soviéticos lançados contra território americano. Contudo, Reagan sustenta que este projeto será meramente defensivo. No Brasil continuam as Campanhas pelas diretas já. O povo brasileiro saiu às ruas clamando por democracia. Portugal prepara-se para receber pela segunda vez na sua História a presença do FMI. O primeiro-ministro, doutor Mário Soares, no seu discurso parlamentar de ontem, fez saber que com uma taxa de desemprego superior a 11% e uma divida externa galopante devido à subida das taxas de juro internacionais, é necessária a intervenção do FMI para ajudar Portugal a sair da crise económica.

– Mas que raio! Eu quero lá saber disso? Então não dizem nada sobre o estado de saúde do Salazar? Este mundo está perdido… – praguejou Eugénia.

Lançou a gata no chão.

– Sai daqui bicha malvada…

Dirigiu-se para o espelho pendurado na parede, abriu a caixa do pó de arroz e com movimentos suaves espalhou-o pelo enrugado rosto.

– Merda de música! Quem me dera ouvir um tango… – parou estática no meio da sala.

– Ai o tango… como o José dançava bem o tango! Como ele era hirto. O meu sangue fervia sempre que dançava o tango nos seus braços! E como eu gostei de sangrar com ele a primeira vez, ai como foi bom…

Eugénia levantou a saia e começou a acariciar a vulva. Soltava suaves gemidos ao passo que ia fazendo movimentos circulares com o dedo médio da mão direita. A mão esquerda segurava a saia.

– Ai José como eu gostei de estar debaixo de ti… ai meu José, ai meu amor… mete, mete!

Com a respiração ofegante, deixou-se cair para cima do cadeirão e ai permaneceu durante uns minutos. Compôs-se e olhou para a porta. Murmurou para a sua gata:

– Será que o Moreira ouviu? Deus me livre… o esforço que fiz para sangrar na primeira noite com ele, se ele sabe! Anda cá minha Lili, não contes o meu segredo ao Moreira! Somos amigas, somos amigas…

O locutor da rádio anunciou uma música que iria passar em primeira mão nas rádios portuguesas. Estava a ter grande sucesso na América uma tal jovem de nome Samantha Fox, e começou a passar a faixa Touch Mi.

Com um movimento abrupto Eugénia lançou a gata para o chão e começou a saltar.

– Sai daqui bicha malvada!

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Imagem: Sérgio Moreira

Texto: Adão Baptista