A State of Mind

Tem que acontecer

Matias começou a sua distribuição diária. O bairro era pacato, habitantes de classe média alta, alguns mesmo muito alta. Pessoas simpáticas que sempre que o viam lhe davam os bons dias. Em manhã de sorte vinham mesmo acompanhados de uma moeda ou, se fosse a dona da casa, de um bolo.

À vista desarmada percebia-se que aquela gente era de bem, era o bairro perfeito para se viver. À medida que ia pedalando, Matias sonhava ganhar dinheiro para poder comprar uma casa naquele bairro, ou mesmo quem sabe “engatar” ali uma moça que morresse de encantos por ele e…

A vida de ardina não era fácil. Levantava-se diariamente às sete da manhã, pois bastava atrasar-se cinco minutos e já a cancela do caminho-de-ferro estava fechada, tendo ele que esperar dez a quinze minutos para atravessar a linha. Aquela segunda-feira não tinha começado bem. Saiu de casa com um atraso de dez minutos, logo teve que levar com a demora do comboio. O comboio passou e a vida continuou.

Pedalando a toda a velocidade lá se deslocou para o bairro afim de ainda encontrar alguns senhores a saírem para o trabalho, a ver se tinha direito a uma moeda. Estava farto de doces. Parou na entrada dos Ferreiras. O senhor era um homem pacato, barrigudo, sempre com o seu relógio de bolso, todo dourado, pendurado nas correntes a fazer inveja ao rapaz. Estava a sair da porta de casa. Matias colou o seu sorriso no rosto. Reparou que o homem não trazia o relógio e muito menos boa cara. Ouviu-o a praguejar.

– Bom dia senhor Ferreira!
– Vai pró diabo com… – bateu a porta, meteu-se no carro e arrancou a toda a velocidade.
Matias ficou sem perceber se o desabafo do homem lhe era endereçado ou apenas o final de uma discussão com alguém que se encontrava no interior da casa. Saltou da bicicleta, poisou o jornal na porta da frente e seguiu.
A casa seguinte ficava um pouco mais afastada. Separada por um terreno vedado por uma grade de cedros que funcionavam de barreira visual para os mais curiosos. Vindas do interior da propriedade dos Guedes, Matias ouviu umas vozes.
– Quero lá saber que ela oiça! Eu já te disse que quero essa bruxa fora de minha casa! Vais trabalhar e fico a aturá-la o dia todo…

– Mas Matilde, ela é minha mãe!
– Não quero saber. Sabes perfeitamente que nunca nos entendemos, ela nunca gostou de mim nem dos teus filhos, nunca os tratou como netos. Sabes bem isso… não vou viver com uma inimiga dentro de casa!
À medida que Matias se aproximava do portão de entrada reparou que o senhor Guedes se dirigia para o seu Mercedes.
– Tens até quarta-feira. Ou sai ela ou saio eu! – disse ela.
– Bom dia senhor Guedes…
O homem olhou o rapaz e murmurou: – “Inferno de vida”. Entrou no carro, bateu a porta e arrancou a toda a velocidade.
Matias poisou o jornal na porta da entrada e seguiu. Começou a aperceber-se que naquela rua as coisas não estavam a correr muito bem. Continuou o seu trabalho e as casas seguintes estavam calmas.

Avistou algum movimento numa casa ao meio da rua. Era a casa dos Rodrigues. Matias encarou com uma ambulância. Pedalou com toda a força para tentar saber o que se passava. Largou a bicicleta e correu ao encontro de um jovem da sua idade que se encontrava junto à entrada.

– Que se passa Gonçalo?
– É a minha irmã… está doente da cabeça…
Antes que o rapaz completasse a frase Matias reparou em dois corpulentos enfermeiros que, com algum esforço, seguravam a maca onde vinha amarrada, literalmente amarada, com uma camisa-de-forças vestida, a jovem Verónica. Espumava pelos cantos da boca. Seus pais encontravam-se à porta da entrada a observar a cena. A senhora chorava ao ver sua menina, com pouco mais de vinte anos, ser levada daquela forma.
– Fiquem neste inferno seus demónios, isto é o inferno! São todos diabos. – gritava a rapariga.
Matias arrepiou-se com tais gritos. Poisou o jornal no muro, agarrou a bicicleta pedalando com toda a força. Os gritos de Verónica martelavam-lhe a cabeça. O coração do rapaz batia fortemente. Parou depois de ser ultrapassado pela ambulância. Pensou que afinal aquele não era o bairro ideal para viver quando fosse adulto, muito menos casar com uma moça dali. Olhou o cesto e só lhe restava um jornal. Era para o senhor padre. A última casa do bairro era a do senhor padre. Já mais calmo, Matias continuou o seu percurso. Já chegava de surpresas para aquela manhã, também só lhe restava a casa do prior, certamente ali tudo estaria calmo, pois o velho homem vivia sozinho, era um ser pacato sempre disposto a ajudar o próximo. Matias, a pedido do padre, não deixava o jornal na porta da frente, seguia até à curva e lançava-o para o alpendre onde se encontrava a porta da cozinha.

Calmamente, só lhe faltava aquela entrega, lá ia pedalando com a cabeça distante, passou o portão da entrada e… ouviu-se um estrondo. O padre saiu do carro apressadamente e reparou no rapaz inconsciente estendido no meio da estrada, a bicicleta distante a uns bons vinte metros. Pessoas corriam a ver o sucedido.

– C’ um diabo que matei o gaiato! – disse o padre.

Texto: Adão Baptista

Fotografia: Sérgio Moreira