Carta ao doutor
Senhor doutor estou a escrever-lhe para lhe contar o meu grande segredo. Sei que nunca vai ler esta carta, porque eu nunca lha vou entregar, mas preciso de contar-lhe isto senão um dia ainda rebento. Tenho uma dor muito forte. Não uma dor daquelas que o doutor me escuta ou manda fazer uns exames e sabe logo o que tenho, é uma dor por dentro, uma dor daquelas que dói muito no coração. De certeza que o doutor sabe porque deve já ter-lhe doído também.
O doutor é meu amigo, brinca comigo e assim, mas eu queria outras brincadeiras. Sei que nunca reparou em mim como uma pessoa, ou melhor, como uma mulher normal e eu sei que não sou. Sou diferente das outras, tenho a cara redonda e assim e sou pequenita e diabética. Mas sou mulher. Ficava triste quando o meu irmão Artur me chamava “cara de monga” mas agora não me importo, ele é pequeno e eu sei que sou mongolóide. Eu adoro quando tenho consulta. Faço sempre a trança porque o doutor uma vez me disse que me ficava muito bem. Agora faço sempre! Eu não gostava dos óculos mas desde que o doutor me disse que me ficavam bem que eu ando sempre com eles.
Olhe, eu gostava de lhe dar um beijo na boca como noa filmes. Eu já experimentei dar no espelho do quarto sem a mãe ver mas não sabe a nada. Com o doutor era diferente, o doutor cheira bem.
Eu gosto tanto quando fico em casa doente e o doutor tem que vir cá! Parece que é o meu namorado e vem namorar… sei que não pode ser sempre porque os pais não têm dinheiro mas gostava de ficar doente uma vez por semana.
Tenho pena de uma coisa. Quando começaram a crescer-me as mamas o doutor apalpava-mas sempre a ver se eu tinha caroços, agora deixou de apalpar, sinto falta disso. Já não gosta delas? Olhe, vou contar-lhe uma coisa. Eu meto o dedo na minha pombinha e penso no doutor e gosto muito e fico muito quente. A mãe diz que não posso fazer porque é pecado e que fico muito doente. Mas eu faço e gosto muito, antes tinha medo mas agora não porque eu já sou doente.
Quando eu vou à missa ao domingo todos os homens olham para mim e dizem-me olá por pena de mim, mas eu não gosto de nenhum, eu só gosto do doutor. Gosto muito do sinal grande que tem no braço do relógio, gosto dos seus dentes branquinhos e das suas unhas. O doutor cheira muito bem, cheira aos lírios.
Eu sei que nunca vai acontecer mas eu gostava de me casar com o doutor. Eu fazia a trança para o nosso casamento! Eu fazia a comida para nós, fazia a limpeza, lavava a roupa e tudo… Eu ia gostar muito de se a mulher do doutor. Depois à noite o doutor podia pôr a mão na minha pombinha que eu deixava. Sei que nunca vai acontecer porque eu sou mongolóide e tarreca e o doutor tem uma mulher, mas eu amo o doutor.
Agora já contei o meu segredo ao doutor, vou esconder a carta e estou muito mais feliz.
Um beijo grande na sua boca.
Clara Neves
—–
Texto: Adão Baptista
Fotografia: Sérgio Moreira