
A sombra de mim
O último paciente saiu. Um homem de meia-idade, provavelmente a mesma do doutor. Não deveria ter mais de cinquenta anos. Doutor Castro estava visivelmente cansado. Todo o dia a escutar, todo dia a tentar aconselhar. Foram dez pacientes, dez pessoas, dez doentes, cada um com o dobro dos problemas do anterior.
Castro parou para pensar. A sua secretária já tinha saído há algum tempo, eram já nove da noite. Estava sempre a dizer-lhe para ter em conta o tempo que passava com cada paciente, mas Castro não tinha coragem de os mandar embora. No fundo ele era um manto retalhado, constituído por pedaços dos seus pacientes.
– Então e eu? – interrogou-se o doutor.
Abriu a gaveta da mesa pegando num bloco de folhas. Sentiu necessidade de se auto-consultar. Começou a escrever.
Caro doutor estou aqui. As pessoas olham-me, muitas das vezes fixamente, outras a verter lágrimas, mas no fundo o que veem elas? Nada. Sou portanto um nada que se encontra diante delas para as escutar. E pergunta-me o doutor se me pagam para ser nada? Pagam doutor… e pagam bem. Sabe que isto de ser-se psicólogo é complexo. Temos que nos abstrair completamente de tudo aquilo que somos, que esquecer que somos alguém. Tudo aquilo que aprendemos, aquilo que nos foi transmitido pelos nossos pais, aqui, neste consultório, não serve de nada. Confesso que por vezes tenho vontade de ralhar, de opinar, até mesmo de bater nos meus pacientes… contudo caro doutor, a minha obrigação é de apresentar uma expressão serena e dizer-lhes: – Acalme-se que tudo se vai resolver! – é para isso que me pagam, é isso que querem ouvir! Contam-me tantas coisas que, confesso, a maior parte delas são automaticamente esquecidas. Porém levo essas pessoas para a cama, durmo com todas elas.
Sabe doutor, o que eu penso pouco interessa aos outros e o que sinto muito menos. Valha-me, pelo menos, a reputação e o respeito que têm por mim ou fingem ter.
Sabe, já nem passear me dá gozo. Observo a Natureza que vai sendo, cada vez mais, transformada pelo Homem que, pateticamente, insiste em estragar a beleza da paisagem. Observo os jovens que se vão moldando todos da mesma forma, leem as mesmas coisas, ouvem as mesmas músicas, falam da mesma maneira e mais grave doutor, pensam todos de forma igual. Seguem todos os mesmos parâmetros. E depois existem os que nem sequer se dão ao trabalho de pensar… esses talvez sejam os mais felizes.
As crianças, ao que me apercebo, são já moldadas no ventre da mãe. Acabam por ser manipuladas de tal forma doutor, que já nem brincar sabem. Tudo tem que encaixar de forma exata. Os pares com os pares, dando origem aos ímpares que irão, também eles, encaixar com os ímpares. Só existem estas duas vertentes. Aqueles que não se encaixarem em nenhuma delas doutor, esses veem cá pagar-me para os ajudar. Eu tenho a obrigação de arranjar a chave para conseguir abrir as suas mentes e, de certa forma, lhe indicar o caminho a seguir: par ou ímpar. E eu doutor? Em qual dos lados me encaixo? Digamos que sou um corpo par com um pensamento ímpar.
Tudo isto me causa bastante inquietação doutor. Confesso que me sinto extremamente desconfortável. O pensar incomoda-me bastante. Isto deve-se ao facto de não poder pensar o que quero, ou melhor doutor, de não poder dizer aquilo que penso. Sinto-me encurralado entre barreiras de arame farpado e não posso passar o limite. É pecado se o fizer. Fui ensinado a ser assim, fui formatado para ser assim, mas sabe caro doutor, eu também penso, eu também sinto que sou alguém!
Aquilo que aprendi ao longo da vida, por muito que me custe dizer, de nada me serve. Mas também lhe digo que sou aquilo que me ensinaram a ser. Já não me revejo nesta sociedade, mas, ao mesmo tempo, também eu sou esta sociedade. Vou armazenando imagens daquilo que fui, do que sou e sonhando com o que quero vir a ser, apesar de estar já conformado que nunca o serei. Estou velho para isso.
Se tenho prazeres pergunta o doutor? Claro que tenho prazeres. Um bom copo de vinho, um cigarro, uma boa melodia, um bom livro, um bom filme… mas tudo isso é fantasia doutor, breves momentos de fantasia e eu tenho que viver a realidade! Sexo… o supremo prazer, eu pago paras ter. Claro que me apaixonei doutor, claro que desejei e desejo levar certas mulheres a deitarem-se comigo mas… não tenho tempo nem jeito para isso doutor. Pago. Eu tenho é que ouvir os pacientes e pensar neles doutor, tenho que os ajudar!
Eu sei… estamos a chegar ao fim da consulta doutor! Agora diga-me de sua justiça: Quem sou eu doutor? Qual o diagnóstico? Por favor doutor… diga-me aquelas palavras que eu quero ouvir… diga-me que tudo se vai resolver doutor! Diga-me por favor que também eu sou gente doutor… não me obrigue a continuar a ser a sombra de mim!
Doutor Castro poisou a caneta. Meteu um cigarro à boca e acendeu-o. Olhou a folha escrita e dobrou-a em quatro. Deu-lhe um beijo e com o isqueiro, que ainda tinha na mão, pegou-lhe o fogo. Deixou que as cinzas fossem caindo no caixote do lixo.
Pegou no casaco, abriu a porta e saiu.
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Imagem: Sérgio Moreira
Texto: Adão Baptista

