Mitos

A liberdade diante do absurdo

“- Perguntei ao meu irmão se as mulheres ainda cantavam lá na fábrica.
– Não! – disse ele – Lá têm tempo para isso…”

Assim se desenrola mais uma conversa com uma colega que dedica grande parte do seu tempo a lutar pela liberdade e a formar gerações nos ideais do respeito e da dignidade. Recorda com nostalgia as vivências de juventude na fábrica do pai, um self-made man que subiu a pulso e cuja geração seguinte teve que fazer a necessária transição para um trabalho em cadeia que tirou a melodia das bocas dos trabalhadores e a substituiu por gestos ritmados e mecanizados. Segue-se uma reflexão sobre como os humanos não podem ser a extensão das máquinas. O olhar distante sugere que não acredita que o caminho seja favorável à classe trabalhadora.

A conversa deixa-me no pensamento uma expressão e um autor. Não lho digo para evitar o clássico: “Já te estás a armar.”

Reza o mito que o astuto rei Sísifo por ter afrontado Zeus e enganado Hades, foi condenado por Hermes a um castigo pior que a morte. Teria que transportar eternamente uma rocha até ao cimo de um monte e esta rolaria até ao início sempre que chegasse ao topo. Neste cenário, Sísifo teria que aceitar a sua condição e encontrar significado no ato de empurrar a rocha. Só assim, resignando-se, conseguiria encontrar a sua liberdade.

O conceito de sermos livres se tivermos consciência e aceitarmos a situação absurda de realizarmos tarefas sem sentido que não levam a nenhum objetivo final, foi explorado por Albert Camus. Mesmo sabendo que o seu trabalho é inútil, Sísifo continua a empurrar a pedra. Nesse ato de persistência e aceitação, ele encontra a sua liberdade. É portanto, uma liberdade interna, encontrada na própria ação de enfrentar o absurdo da existência e criar significado na falta de sentido. Sísifo abraça a realidade da sua tarefa e reconhece sua inevitabilidade. Essa aceitação é um ato de liberdade, pois ele não luta contra o que não pode ser mudado, mas liberta-se do peso emocional da resistência e do desejo de uma realidade diferente.
O autor descreve esta aceitação nas seguintes palavras: “O homem absurdo vislumbra assim um universo ardente e gelado, transparente e limitado, no qual nada é possível mas onde tudo é dado, e para além do qual só há afundamento e nada. Pode então decidir aceitar a vida num tal universo e daí retirar a sua força, a sua recusa de esperar e o testemunho obstinado de uma vida sem consolação…”
O autor vai um pouco mais longe na sua crítica ao homem absurdo dizendo que “acreditar no absurdo equivale a substituir a quantidade pela qualidade da experiência. Se estou convencido de que esta vida não tem outra face senão a do absurdo, se sinto que todo o seu equilíbrio se deve à oposição perpétua entre a minha rebelião consciente e as trevas em que me debato, se admito que a minha liberdade não tem sentido senão em relação ao seu destino limitado, então devo dizer que o que conta não é viver o melhor possível, mas viver o mais possível.”

Não sei se algum dia as mulheres vão voltar a cantar dentro das paredes daquela fábrica ou se vão encontrar a tal liberdade interna da resignação. Parece-me que a viagem rumo à verdadeira liberdade exige que se façam as malas e se parta rumo ao Olimpo para enfrentar os deuses que nos submetem a esta condição. É uma viagem de grupo e que não se coaduna com meias medidas. É preciso quebrar para depois se reconstruir.

Fotografia e texto: Sérgio Moreira