
O muro e a roda da fortuna
Há uns dias, um amigo, dado a esta coisa das conexões e redes políticas, numa das suas breves demonstrações de retórica diz: – A função de um político é deixar as coisas melhor do que as encontrou.
Dispensando outro tipo de comentários, pedi-lhe um boletim de voto por tamanha honra a minha conhecer tal figura. Sabendo eu que não guarda esse tipo de inocência em si, estaria certamente a sofrer as consequências da rodela de limão que colocou num copo meio vazio de gin.
Nem a propósito, no dia seguinte, numa das minhas caminhadas em fim de tarde, encontro o senhor António.
Habitante numa rua tranquila, no coração e centro histórico da aldeia, dono de uma casa construída de pedras cuidadosamente dispostas, de estrutura sólida e duradoura. Um telhado em lajes de pedra cinza-azulada e umas janelas de madeira desgastada. Um espaço com personalidade e história, construído, segundo já me disse, pelas mãos do seu avô. Ainda eu era um catraio e já não lhe conhecia a idade. Um homem de feições marcantes que refletem uma vida dedicada ao trabalho na terra.
– Boa tarde Sr. António, está tudo bem consigo?
– Boa tarde menino. Nem por isso, estes patifes da junta têm aqui um belo serviço. Fizeram aqui o muro com a água a cair para o terreno e estragam-me isto tudo. Já mandei lá a minha filha. Agora diz que tenho que falar lá com uma engenheira que conhece os da câmara para isto ficar resolvido.
Contava-me a minha avó, naquelas tardes em que depois da escola iamos apanhar sacos de pinhas para acender a lareira, que este senhor foi dos que mais lutou pela liberdade na altura da outra senhora. Dizem que albergou dois irmãos que andavam fugidos e consta-se que participava em vários comícios políticos clandestinos. Chegou a passar umas noites na cadeia de onde saiu com marcas que guardou para a vida e as quais partilha orgulhosamente na mesa de sueca da tasca do João.
O senhor António, que lutou para que estes mafiosos se instalassem no poder, estava agora nas mãos de uma tal engenheira, rapariga na flor da idade, que transporta em si a arrogância de quem já se confunde com o sistema e que lhe resolve o problema se ele lhe for prestar vassalagem. Isto porque, pela via normal, na junta, nada podem fazer por ele. Tudo muito conveniente.
Os únicos a beneficiarem com um sistema ineficaz parecem ser aqueles que têm o poder de ação e o dever moral de o tornar eficaz. No entanto, a população depende da intervenção de intermediários para ter acesso a algo que devia ser conseguido por via institucional. Esta dependência cria uma dinâmica em que certas personagens se tornam indispensáveis e fornecem soluções através de atalhos em troca de apoio eleitoral perpetuando assim o clientelismo. Criam redes de lealdade e distribuem recursos governamentais a seu belo prazer. Esta distribuição de favores como estratégia de ascensão política mina a ética, a transparência e a equidade no processo político.
Esta desconexão entre pessoas que estão no sistema e os restantes que o alimentam, tem tendência a resultar em retribuição social. Faturar política e economicamente com as necessidades e sentimentos dos outros traz consigo consequências. Alguns políticos aproveitam-se dessa situação, apresentando-se como “outsiders” ou “agentes de mudança” que prometem romper com o status quo e enfrentar os problemas existentes. A frustração generalizada pode favorecer esses candidatos, mesmo que as suas propostas sejam populistas. Quem quer segurar a Roda da Fortuna tem de entender a responsabilidade da sua tarefa não vá o senhor António arrepender-se da sua longa luta pela democracia.
Fotografia e texto: Sérgio Moreira

