A textura de um mito
Assim que chego ao Cabo Finisterra, os meus sentidos são envolvidos por um véu de perplexidade e reverência. A imponência da paisagem é como um quadro que escapa das bordas da tela, onde o céu e o mar se encontram num abraço interminável, dissolvendo as fronteiras entre o visível e o etéreo. Aponto a objetiva e sei exatamente o que estou a registar mas tenho perante mim uma imagem difícil de digerir. A força mitológica do espaço confronta os limites da minha racionalidade.
A história deste local ecoa nas brisas salgadas que varrem a costa, sussurrando antigas epopeias e lendas perdidas no vento. Em cada uma sentem-se os segredos de peregrinos e viajantes que ousaram desafiar o mundo conhecido. A importância histórica deste lugar transcende o concreto, manifestando-se como uma presença quase tangível de todas as jornadas que aqui culminaram.
A sua grandiosidade é uma lembrança de que, uma vez, a humanidade acreditava que o mundo terminava aqui, mergulhando nas águas desconhecidas. A história da exploração, da busca por significado e do anseio pela transcendência, tudo isso está entrelaçado nas rochas que beiram o precipício.
Aqui, onde as águas se fundem com o horizonte, os mitos romanos e celtas dançam um balé etéreo. As águas revoltas sussurram segredos das almas perdidas que vagueiam entre as dimensões.
Os romanos chamavam-no de “Finis Terrae”, um limiar onde o mundo material desvanece e a imaginação toma as rédeas. Os celtas, por sua vez, batizaram-no de “Promontório Nerium”, uma passagem sombria para o reino dos mortos, onde as sombras desempenham a sua dança eterna.
No lendário Caminho de Santiago, os peregrinos trilham um trajeto que ultrapassa a geografia. Cada passo é uma jornada em direção à compreensão do próprio ser, um rito de passagem entre a humanidade e os mistérios do universo. Ao alcançar o Cabo Finisterra, o peregrino torna-se alquimista, transformando as suas experiências em ouro espiritual.
Nesse cenário, o tempo é uma miragem e os mitos entrelaçam-se como teias. O mar ecoa as vozes antigas e os ventos sussurram os desejos dos antigos deuses. O Cabo Finisterra é o epicentro de um universo onírico, onde a realidade e a fantasia se encontram, onde as fronteiras se dissolvem e a jornada é tão infinita quanto os segredos que esconde.
Na sinfonia caleidoscópica do horizonte, o mar e o céu dançam um tango em que um véu de névoa prateada abraça os dois, criando uma fusão surreal de tonalidades que é ao mesmo tempo éter e substância, o palpável e o efémero.
Nesse encontro de elementos, o espaço e o tempo parecem entrelaçar-se numa coreografia onde a realidade e a fantasia se abraçam num abismo de beleza. É como contemplar o momento em que a criação ainda é uma tela em branco, onde os tons do céu e do mar se misturam, aguardando a mão do artista para dar forma a esse sonho de cores indescritíveis.
Neste local os mitos emergem das sombras do subconsciente, como entidades a quebrar barreiras dimensionais para habitar o palco da existência tangível.
Nas asas da fantasia, os mitos erguem-se como estrelas titilantes, mas as suas imperfeições surgem como rachaduras na superfície de um espelho. As criaturas lendárias, tão majestosas na imaginação, tropeçam nas suas próprias contradições, como sonhos que desvanecem na luz do amanhecer. Minotauros que se perdem em labirintos criados pelas próprias mentes, sereias cujas canções encantam mas também enganam, deuses que se desentendem e destronam uns aos outros como marionetas.
Cada deus mitológico traz consigo características humanas: ciúmes, rancor, paixões desenfreadas. Eles são alicerçados na psicologia humana, projetando os nossos medos e desejos em forma divina. O herói destemido também é tocado pela sua própria fragilidade, uma armadura rachada que o liga ao lado sombrio da humanidade.
É precisamente nas falhas dos mitos que encontramos o espelho dos nossos conflitos internos, das nossas lutas e dos nossos triunfos. Enquanto as suas asas podem ser de ouro, os seus pés são de barro, lembrando-nos de que a busca pela perfeição é tão ilusória quanto o mito que a retrata.
Assim, nos mistérios fragmentados do mito, descobrimos um espelho para a imperfeição humana. A beleza reside na aceitação das imperfeições. E ao olhar para esses mitos com olhos mais compassivos, percebemos que a sua verdadeira magia reside precisamente na sua capacidade de refletir as nuances complexas da vida que todos nós compartilhamos.
Nessa terra de sombras e reflexos as multidões seguem rituais, traçando linhas invisíveis entre o mito e a realidade. As palavras dos mitos transformam-se em dogmas suspirados em sussurros que moldam a forma de gerações.
Nesse redemoinho surreal, o mito é o farol que guia o curso da sociedade. As suas histórias tecem uma tapeçaria de esperanças e medos, influenciando comportamentos como uma maré inexorável. A necessidade de pertença é tão grande que as mentes entrelaçam-se com os mitos, criando uma rede invisível que conecta todos os indivíduos numa sinfonia coletiva.
E no entanto, entre os raios de luz tecidos pelos mitos, as sombras da verdade oscilam como mariposas noturnas, dançando nos cantos mais obscuros da consciência. A sociedade vive à beira do precipício, onde a necessidade de encontrar sentido na fantasia choca com a ânsia de entender a realidade. Cidades de contos de fadas escondem vielas sombrias e a busca por redenção muitas vezes leva a becos sem saída.
No meio dessa miragem coletiva, alguns ousam desvendar o véu do mito e enfrentar a realidade crua. Eles tornam-se alquimistas da verdade, transformando ilusões em verdades tangíveis. Enquanto a sociedade continua a dançar em harmonia com os mitos, esses dissidentes destemidos forjam um caminho de desconstrução e reconstrução, procurando libertar a sociedade das amarras da ilusão e abraçar uma realidade mais complexa e empoderadora.
Fotografia e texto: Sérgio Moreira