A State of Mind

Eu não sou filho de ninguém.

Afonso entrou no confessionário. Não sabia bem o que estava ali a fazer, apenas que alguma coisa o obrigara a ir para aquela igreja.

– Perdoe-me padre porque pequei.

Afonso não via a cara do homem que estava do outro lado.

– Há quanto tempo não te confessas meu filho? – perguntou o padre.

– Eu nunca me confessei…

– Não foste criado na família cristã e sentiste necessidade e encontrar o caminho da salvação meu filho?

– Deve ser mais ou menos isso senhor! Mas agradeço que se cale e me escute! É para isso que lhe pagam!

– Mas meu filho…

– Cale-se senhor… eu não sou filho de ninguém! Ouça-me por favor. Só cá vim porque preciso de falar com alguém, não para ouvir os seus conselhos. – Afonso respirou fundo. O padre manteve-se em silêncio.

– Eu fiz asneiras… tenho quarenta anos e toda a vida fiz asneiras.

– Conta lá meu filho.

– Fizeram asneiras comigo e eu agora faço asneiras com os outros… melhor, com as outras. Sabe, eu gosto de mulheres. Gosto muito de mulheres. Mas só gosto de certas mulheres percebe?

– Sim…

– Eu gosto de lhes dar prazer… mas gosto que elas sofram! Sei que não deve entender porque o senhor para vir para esta profissão não deve gostar de mulheres. Mas escute-me por favor.

– Estamos aqui para falar de ti e não de mim meu filho…

– Cale-se senhor e escute-me! E não me chame meu filho porque detesto que o façam… já lhe disse que não sou filho de ninguém. – ouviu-se um suspiro dado pelo padre.

– Eu tento parar mas não consigo… elas não me deixam parar. Elas pedem, imploram que lhe faça mal. Choram muitas vezes sabe senhor, mas sei que estão a chorar de prazer, a pedir por mais, a pedir que não vá embora, que volte novamente. Mas isso não faço! Apenas estou uma vez e acabou. Muitas vezes causa-me fobia… sabe por causa da outra.

– Mas que fazes tu afinal meu…

– Eu violo raparigas! Mas porque me pedem entende? Elas não têm nada que vestir-se daquela forma, não têm nada que pentear-se daquela forma… até parece que a conheceram!

– Mas quem meu filho?

– Foda-se, cale-se e escute… odeio isso de meu filho! Eu não sou filho de ninguém.

– Eu espero. Espero e elas aparecem. Saem da fábrica e atravessam o arvoredo. Eu depois atendo aos seus chamamentos.

– Mas não tens medo de…

– Não senhor. Elas não contam! Se são casadas não vão contar porque os maridos ganham-lhes nojo; se são solteiras não vão contar porque precisam de arranjar homem para se casar. Quem vai querer uma mulher que já foi de outro? Quem vai querer uma mulher usada… desonrada?

– Mas isso é…

– Pecado? Será? Então e ela que vivia a arrastar-se pelas igrejas, que era ajudada pelas vossas confrarias, que encontrou nesta vossa casa o caminho da salvação, que me obrigava a ir à missa, beijar a mão do padre… acusou, excomungou e expulsou a filha de casa por vergonha! Mas teve o apoio da igreja que a perdoou… viu o que ela me fez? A igreja achou um ato de heroísmo porque ficou a tomar conta do menino… do anjinho que não tinha culpa dos pecados da mãe. Porque não me deixou ir com aquela que nunca conheci? – Afonso começou a chorar – Eu sou assim porque ela me algemou a esta vida… Ela é a culpada! Eu tinha nove anos senhor!

O padre mantinha-se em silêncio.

– Ela puxava-me a cabeça para baixo com tanta força… magoava-me muito por vezes. Sabe quantas vezes eu vomitei? Sabe? Aquilo cheirava tão mal… ela cheirava mal! As mulheres cheiram mal.

Ficou calado por segundos.

– Um dia um padre ofereceu-me uma imagem de um santo… penso que o São Sebastião. Eu rezava-lhe todas as noites a pedir-lhe para que no dia seguinte não tivesse que passar pelo mesmo. Só mais tarde percebi a mensagem. O santo ali pregado não podia ajudar-me, que podia ele fazer por mim? Aí eu percebi que aquela cara de sofrimento era a mesma que eu iria ver sempre que estivesse na frente de um espelho, para o resto da minha vida.

– Mas meu filho, as mulheres de quem abusas não têm culpa do sofrimento que essa mulher te fez passar!

– Não me chame meu filho raios… Como sabe? Como pode dizer isso? Eu também nunca tive culpa de nada.

– Agora sim, quero confessar-lhe um pecado senhor… padre!

O padre temeu o pior.

– Eu sinto a falta dela… todas as noites assim que poiso a cabeça no travesseiro sinto tanto a falta dela!

Afonso levantou-se. Preparava-se para abandonar o confessionário e voltou-se. Meteu a mão no bolso do casaco e dele retirou uma estampa com o São Sebastião.

– Pegue, já não preciso dele. Nunca me ajudou.

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Imagem: Sérgio Moreira

Texto: Adão Baptista