A State of Mind

Gilberto fechou-se no quarto…

Gilberto fechou-se no quarto. Retirou a chave da fechadura, abriu a janela e atirou-a. Poisou a garrafa em cima da estante. Abriu a gaveta da mesinha e retirou um caderno, remexeu e lá encontrou uma esferográfica.

Não sei muito bem por onde começar e muito menos o que escrever. Acho inúteis estas palavras mas cá vão. Ultimamente sinto que não existo. Sinto-me um pincel gasto que o Pintor terá que substituir… para nada presto. Ultimamente as conversas, as nossas conversas, resumem-se a contas, dinheiro e empréstimos. Enfim.

Não quero desculpar-me de nada mas também não estou aqui para assumir responsabilidades. Maria acho que a culpa é tua. Apenas te limitaste a assistir a esta peça teatral que se resumiu ao degredo da minha vida. Que fizeste tu? Nada. Apenas te preocupavas em trabalhar e saber se o dinheiro chegava para pagar as contas. Enfim.

Vives de aparências e isso para mim não dá. Deves estar a interrogar-te: E o jogo? E o álcool? E a cocaína? Pois te digo que esses são os meus verdadeiros prazeres. Nos últimos anos foram a minha verdadeira companhia. Sei que são vícios mas… todos nós os temos. Estou a despedir-me mas não de ti, apenas do mundo. Enfim.

Tenho uns recados para dar à minha mãe. Diz-lhe que nunca a entendi muito bem. Se não queria que eu andasse “nesta vida”, como tantas vezes disse nas reuniões de família, pergunta-lhe então porque me alimentou sempre “esta vida”? Quantos aos maus amigos e más companhias que afirmava serem os causadores… diz-lhe apenas que neste mundo não existe nada disso de amigos ou companhias. Apenas existem cenas do hoje e do agora… Dizia sempre ao pai: “temos que o ajudar! Temos que tirá-lo disto!” Pergunta-lhe se algum dia teve a brilhante ideia de perguntar-me se queria ser ajudado? Se algum dia pedi ajuda? Não entendo. Enfim.

Quanto ao meu pai, podes dizer-lhe que não tenho nada a dizer-lhe, o que é mau.

Agora estas linhas são para os meninos.

Henrique: sei que com apenas dez anos será muito difícil entenderes tudo isto que estou a fazer. Mas olha uma coisa filhinho… também quero morrer. Não sofras por mim porque eu não mereço.”

Gilberto interrompeu a escrita. Poisou a esferográfica e snifou um risco de coca. Bebeu o último gole de whisky. Prosseguiu.

Filho gostava de ter vivido tempo suficiente para te ver feliz mas confesso que ultimamente já não te via. Irritas-me muito com todas as perguntas que me fazes e com os pedidos para irmos jogar à bola para ao parque. Alguma vez te perguntaste se o pai gosta dessa cena de jogar à bola? Enfim.

Mas amo-te.

Agora para o Mateus: Filho, nasceste de um erro da tua mãe. Pensou ela que o teu nascimento iria “salvar” o matrimónio que no fundo já nada tinha para ser salvo. Confesso que no início cheguei a duvidar se eras realmente meu filho, mas se ela diz que és, deves ser. Com apenas um ano provavelmente nunca te recordarás do meu rosto ou mesmo da minha existência mas pode ser que alguém te diga que um dia eu existi. Enfim.

Quanto ao resto Maria, digo-te que ultimamente vivi sempre no limite, sempre a tentar preencher um vazio que sinto. Como ainda não consegui e como não tenho mais dinheiro nem mais nada para vender… acho que já não vale a pena andar por cá.

Não julgueis este meu ato como algo de egoísta ou cobardia… apenas acho que estareis melhor sem mim.

Adeus a todos.

Gilberto Tenente”

Poisou o caderno em cima da cama e snifou o último risco de cocaína. Abriu a garrafa e regou-se com o diluente que esta continha no seu interior. Acendeu o isqueiro e seguiu o percurso da chave.

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Imagem: Sérgio Moreira

Texto: Adão Baptista