A crise

As correntes da História

Corria o ano de 1455 da era cristã quando o Papa Nicolau V através da bula “Dum Diversas” concedia a D. Afonso V de Portugal “permissão plena e livre para invadir, buscar, capturar e subjugar sarracenos e pagãos e outros infiéis e inimigos de Cristo onde quer que se encontrem, assim como os seus reinos, ducados, condados, principados, e outros bens […] e para reduzir as suas pessoas à escravidão perpétua”. Nada de novo! Aqui deste lado do Atlântico, desde que existem dois seres humanos no mesmo espaço, um tenta subjugar o outro e, portanto, a escravatura no século XV já é uma prática milenar. Desta vez com o apoio da Igreja que vivia mais uma das suas páginas cinzentas.
O imaginário ocidental de escravatura desta época leva-nos para o tráfico negreiro entre os continentes africano e americano. No entanto, a utilização de mão de obra escrava africana dá-se apenas com a produção em grande escala de cana-de-açúcar, tabaco e algodão e apenas depois de se perceber que a mão de obra nativa não era adequada. Precisava-se de capacidade de trabalho e força de braços que existia em África. Para nós, esta é a imagem e o estigma que carregamos. Somos descendentes de esclavagistas! Mas não somos racistas, escravizamos qualquer um.
O continente africano foi o plano de recurso numa Europa que não tinha população suficiente para ser colocada no Novo Mundo. Naquela época já se tinha percebido que a mão de obra escrava não era tão barata como se poderia pensar. Segundo Eric Williams na sua obra “Capitalismo e escravidão”, o sustento de escravos que podiam ser pouco produtivos e que não tinham outra motivação que não a de “comer o máximo e trabalhar o menos possível”, era menos rentável que pagar a homens livres para executar as mesmas tarefas mas as monoculturas exigiam uma mão de obra que a Europa não tinha. No entanto, os sucessores dos índios foram os brancos. Tal como no mito nórdico de Náströnd, no século XVIII, os condenados europeus (vagabundos, malandros e vadios, ladrões, ciganos,entre outros), os dissidentes políticos e religiosos eram condenados ao trabalho e desterrados nas ilhas canavieiras. As práticas de engajamento dos nossos dias em que só se dá a liberdade a alguém depois se deram pagos os valores acordados pelas travessias são prática comum de há uns séculos.
O meu fascínio pelas correntes é apenas porque a nossa identidade contruiu-se com base na subjugação dos nossos semelhantes. É uma ação continua que nem sempre conta com bulas papais claras e públicas. Hoje a escravatura está dissimulada através de práticas políticas ou comerciais e somos todos nós os passageiros dos navios negreiros.



Fotografia e texto: Sérgio Moreira