A State of Mind

Dia dos namorados

Era um dia muito especial para Andrade. Não só por se tratar do dia dos namorados mas, principalmente porque ia jantar com o seu menino.

Sentia-se um adolescente excitado mas ao mesmo tempo com medo ou, vá lá, receio. Nos seus cinquenta e oito anos de idade nunca tinha feito tal coisa, sempre encobria aquilo que desejava.

José, ou Zé como gostava de ser chamado, tinha apenas 22 anos de idade. Andrade tirou-o da rua. Quando o engatou o rapaz era um sem-abrigo que se prostituía para ganhar algum dinheiro para comer e para os seus vícios. Já passaram três anos mas Andrade ainda se lembrava perfeitamente daqueles olhos negros, cheios de remela, que se evidenciavam no rosto magro e sujo de José. Agora não se cansava de repetir que foi amor à primeira vista. Zé ria e gozava com a cena.

Andrade é um pianista conceituado que vive bem. O que ganha nas suas aulas de piano e, sobretudo, nos vários concertos que dá quase exclusivamente em solo estrangeiro, permite-lhe viver de forma bastante abastada. Ajudou portanto o moço a sair da rua, pagando-lhe as primeiras rendas e mais tarde, mexendo um cordelinhos como se diz na gíria, conseguiu inseri-lo no mundo do espetáculo.

Ainda recordava quando, num desespero abrupto, se declarou ao rapaz. Este desatou a gargalhar.

– Eu já sabia… – retorquiu Zé. Engraçado foi ver um cinquentão corar como uma criança envergonhada.

Depois disso não mais o homem deixou de investir no rapaz. Conseguiu-lhe umas audições e finalmente lá lhe arranjou emprego no mundo do espetáculo. Comprou-lhe a sua primeira caixa de pinturas e ensinou-o, pacientemente, a maquilhar-se. Assistiu, nervosíssimo, ao seu primeiro espetáculo de drag queen. Admirou cada movimento que Zé fazia em palco, deliciando-se como que estivesse na presença da verdadeira Maria Calas. Ficou tão entusiasmado que já os outros espetadores tinham terminado e Andrade, de pé, continuou a aplaudir. Quando o rapaz lhe perguntou o que tinha achado, Andrade não teve palavras, ficou em silêncio.

Já namoravam quase há um ano. Andrade chegou a casa e, depois de tomar um demorado banho, escolhia o fato que iria vestir naquela noite. Tirou um fato preto e viu que estava bem engomado. Colocou-o em cima da cama e deslocou-se para a casa de banho para se barbear. Cuidadosamente foi fazendo a gilete deslizar pelo rosto. Perfumou-se. Dirigiu-se novamente para o quarto. Vestiu a camisa branca e começou a vestir o fato. Resolvera que hoje não iria pôr gravata. Calçou as meias pretas e seguidamente os sapatos. Olhou para o espelho e achou-se… extremamente formal, muito vestido à trabalhador, ou quiçá, como quem vai para um velório. Sentiu-se muito velho e um pouco ridículo. Respirou fundo e dirigiu-se novamente para o guarda-fatos. Olhou, olhou e nada lhe agradava. Coçou a cabeça e, nada lhe agradava na mesma. Olhou o fato cinzento que já não vestia à uns tempos porque achava as calças com um corte “demasiado moderno”. Tirou as calças do cabide. Vestiu-as. Sentiu-se bem dentro delas. Foi à gaveta do armário e viu um polo de malha azul escuro que a irmã lhe havia dado e que ele nunca vestira. Vestiu-o por cima da camisa branca. Foi ver-se ao espelho. Encolheu um pouco a barriga e sentiu-se jovem, ao mesmo tempo que riu da figura ridícula que estava a fazer. Pegou na chave do carro e saiu porta fora.

Chegou ao restaurante e, dirigindo-se à menina responsável, deu o nome da reserva que tinha feito. A menina indicou-lhe a mesa. Foi sentar-se esperando o seu menino que deveria estar a chegar, como combinado. Enquanto esperava abriu uma garrafa de vinho maduro tinto, Quinta do Noval Douro, reserva de dois mil e sete. Ia batendo com os dedos na mesa ao mesmo tempo que olhava para o relógio. Começava a ficar impaciente uma vez que já passavam vinte e cinco minutos da hora marcada. Trinta. Quarenta. Andrade estava já aborrecido. O restaurante estava repleto de casais e ele sentia-se um pouco um abandonado solitário numa multidão. Batia o pé. Passou uma hora.

Estava a irritá-lo ainda mais o empregado de mesa que teimava em vir perguntar-lhe se queria que lhe trouxesse o cardápio. Limpou a boca ao guardanapo. Tinha vontade de chorar, sentia-se espezinhado.

Finalmente avistou a figura esperada a falar com a menina da receção. Angelicalmente vestido, Zé procurava o seu companheiro naquela imensidão de gente. Finalmente viu a mão de Andrade levantada a dar-lhe sinal. O coração do senhor batia de alegria.

– Desculpa… mas tive que ir aí a uma loja! – Disse Zé.

Andrade já nem se lembrava os nervos que sentiu enquanto esperava. Levantou-se e esticou a mão para cumprimentar o rapaz.

– Nada disso… – ao mesmo tempo que disse isto, José inclinou-se e presenteou-o com um suave beijo nos lábios. Andrade ficou atónito. Envergonhado e ao mesmo tempo delirante sentou-se e engoliu a saliva. Não olhou para os presentes da mesma forma que ninguém estava interessado em saber o que se passava naquela mesa.

– Estiveste a beber… – gracejou Zé sorrindo para o senhor. Ao mesmo tempo meteu a mão no bolço e dele retirou um pequeno embrulho. Minúsculo mesmo.

– Pega, é para ti. Por isso demorei mais um pouco.

Andrade pegou no pequeno embrulho e tirou um alfinete de gravata do seu interior.

– Obrigado… mas eu nem comprei nada para te dar… que cabeça a minha!

– Tu não precisas de me dar nada… tu deste-me a alma.

Jantaram em amena cavaqueira até que Zé se lembrou de começar a contar anedotas. Andrade ria à gargalhada com as caras que o rapaz fazia. Riu tanto, mas tanto que… acabou mesmo por urinar nas calças. Envergonhado contou a José.

– Que mal tem? É sinal que estás feliz!

– És maluco! Então agora quando me levantar toda a gente vai olhar para mim e rir-se! Que vergonha… que figura ridícula eu vou fazer.

José abanou a cabeça. Pegou no copo meio de água que se encontrava em cima da mesa. Despejou-o nas suas calças. Levantou-se, esticou-lhe a mão.

– Anda, partilhemos o ridículo juntos.

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Imagem: Sérgio Moreira

Texto: Adão Baptista