Dar e tirar
Bateram quatro fortes pancadas na porta. A força de cada uma fez vibrar cada objeto que se encontrava no interior da casa. António levantou-se da cama, olhou para o relógio que trazia no pulso reparando que pouco passava das quatro da manhã.
– Arminda… bateram à porta, deve ser para ti.
– Vai lá ver quem é, homem de Deus… – resmungou a senhora.
– Vai lá tu que eu não sou a parteira!
– Quem é o homem da casa? Vê lá se queres que lá vá de saiote…
– Mas podes vir comigo, não? Dizem que anda para aí tanta ladroagem, ainda na outra semana entraram numa casa no Outeiro e roubaram lá tudo…
– Se fossem ladrões não batiam à porta! Deixa-te de ser medricas Tono… sabes que deve ser pra eu ir fazer algum parto! Veste as ceroulas e vai lá abrir a porta, homem.
Contrafeito e a resmungar António lá obedeceu à parteira.
– Quem é? – perguntou ele do interior da casa.
– É o António, o filho da Aurora Marreca. – respondeu a voz do lado de fora.
António deu duas voltas à chave que se encontrava na fechadura e lá abriu a velha porta de madeira.
– Calma homem! Com tanta força ainda me derrubas a porta ou me matas do coração…
– Desculpe mas a minha mulher entrou em trabalho de parto e pediu para vir a correr chamar a tia Arminda…
– Pois ela já deve estar a preparar-se. Já está habituada… Arminda é para ti. – gritou ele lá para dentro. – Ela vem já, deve estar a preparar as coisas pra levar. Senta-te aí nessa cadeira que vou buscar a garrafa da cachaça pra aquecermos um bocado por dentro.
Encheu o copo do rapaz e de seguida o seu.
– É o primeiro filho?
– É, sim, senhor…
– Vai tudo correr bem, ela tem umas mãos santas.
Olhou novamente para o relógio de pulso.
– Tem aí um bom relógio… – disse o rapaz para fazer conversa.
– É mesmo! – Afirmou António com orgulho – Foi o meu pai que mo ofereceu meses antes de morrer, já o pai dele lho tinha oferecido a ele… por dentro é todo em ouro! Olha agora quando eu morrer não sei para quem ficará…
A parteira chegou à sala. Fazia-se acompanhar da sua famosa mala com os utensílios necessários para o parto bem como uma lanterna, sua companhia de todas as noites que era chamada para ajudar alguém a nascer.
– Tens lá toalhas limpas em casa ou preciso levar? – perguntou ela ao rapaz.
– Tenho lá, tia Arminda. A minha sogra já lá ficou a preparar tudo.
Arminda dirigiu-se para a porta.
– Vamos lá, então?
– Eu vim a pé… vim a correr!
– Não tem mal, eu levo a bicicleta!
Montou a velha bicicleta preta e fez-se ao caminho. O rapaz ficou a acabar o copo da cachaça.
Pedalando a alta velocidade a parteira lá se dirigiu para a habitação da futura mãe.
A mãe de Ana já a esperava na entrada.
– Boa noite, dona Arminda. A rapariga diz que está com muitas dores mas ainda não lhe rebentaram as águas! Estou com algum receio!
– Calma, dona Aninhas, que vai com a graça de Deus correr tudo bem! O resto estou cá eu para tratar.
Entraram no quarto e Arminda examinou a rapariga.
– Ainda estás atrasada. Quase dava para ir dormir e voltar a meio da manhã. É melhor te levantares e caminhares um pouco pela casa, ajuda a passar as dores e faz com que te rebentem as águas.
A moça obedeceu à parteira.
– Sabe dona Aninhas é de ser o primeiro que a rapariga está borrada de medo. Ainda só tem três dedos de abertura e precisa pelo menos ir aos oito.
– É nova… – disse a mãe.
– Vai correr bem, não esteja com medo. Ela tem umas ancas largas, tudo indica que vais ser uma boa parideira!
– Deus Nosso Senhor a oiça.
Finalmente António chegou.
– A Ana? Já há novidades?
– Descansa rapaz que ainda está atrasada. Podes ir deitar-te um bocado. – disse a sogra.
O rapaz encaminhou-se para a esposa e ajudou-a a passear pela casa. Passou uma hora e as duas mulheres encontravam-se sentadas na conversa. Ana gritou.
– Rebentaram finalmente! – exclamou a parteira.
Levou a moça para a cama e examinou-a outra vez.
– Vês, já abriste sete dedos. Fez-te bem andar! Mais meia hora e começas a puxar.
Sempre atenta à rapariga, Arminda começou os preparativos. Passados os trinta minutos examinou-a novamente.
– Está na hora… começa agora a puxar com força quando eu disser. Um, dois, três… puxa agora. Um, dois, três… outra vez; vai rapariga que já cá está a cabeça! Anda agora com força para saírem os ombros… vai… já está todo cá fora graças a Deus! Tens aqui um belo rapaz! – disse Arminda enquanto a criança gritava desalmadamente. Mostrou o rapaz à moça e depois de lhe cortar o cordão umbilical dirigiu-se para a bacia de água morna que se encontrava poisada em cima da cómoda. Limpou-o, vestiu-o e foi levá-lo ao colo da mãe.
– Pega lá… vês não custou nada! Nem rasgaste muito por baixo! Eu disse logo à tua mãe que ias ser uma boa parideira. São muitos anos e raramente me engano! Já podem chamar o pai.
O rapaz entrou e correu para junto da mulher e do filho.
– É um rapaz Tono! – exclamou Ana com orgulho. Os olhos do moço brilharam.
– Já sabeis o nome que lhe ides dar? – perguntou Arminda.
– É António como o pai e o avô. – disse ele – É o meu Toninho Marreco!
A parteira encaminhou-se para a porta. Depois de todas as recomendações dadas quer à recente mãe, quer à avó, montou a bicicleta e lá seguiu o seu destino com a Graça de Deus. Pelo caminho ia pensado no bebé que nasceu. Ficava sempre muito feliz e, sobretudo, aliviada quando tudo corria bem. O facto de não ter filhos ia sendo compensado com estes momentos. Achava que nunca tinha engravidado porque Deus assim queria, tinha para ela a missão de ajudar a nascer, não de criar e ensinar. Tanto ela como o marido nunca falavam muito nisso. Aceitavam a vontade de Deus. Pensava com orgulho no seu Tono. Sabia que daria um bom pai mas Deus assim não quis. Era um excelente marido, se ela andava adoentada fazia-lhe tudo. Tinha medo de a perder. E, verdade seja dita, também Arminda tinha medo de perder o seu tesouro.
Imbuída nestes pensamentos chegou rapidamente a casa. Reparou que a porta da entrada estava aberta, certamente António já estava a pé e tinha ido arranjar o gado. Dirigiu-se para o fundo do quintal, perto dos aidos, e chamou:
– Ó Tono… Toninho estás aí? – ninguém lhe respondeu. Estranhou e dirigiu-se para casa.
– Ai meu Deus…
A desgraça tinha entrado em casa da parteira. António estava estendido no meio da sala, a casa toda virada do avesso.
Voltou-o e reparou nas três ou quatro facadas que tinha na região frontal do tronco, sendo a mais profunda na zona do coração. O braço esquerdo estava partido e faltava-lhe o precioso relógio.
– À que d’el rei ajudem que me mataram o meu Toninho…
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Imagem: Sérgio Moreira
Texto: Adão Baptista