
Peso de consciência
Laura olhava a prateleira dos bolos. Era indiferente comer mais um ou dois, só tinha comido três ao pequeno-almoço. As bolas de Berlim com aquele creme amarelo estavam a pedir à moça para que as comesse. Chamou a empregada de mesa.
– Eram duas bolas de Berlim, por favor, e uma coca-cola.
– Com certeza.
Com a bandeja na mão a empregada lá trouxe a continuidade do lanche de Laura. Os olhos desta sorriam de felicidade. Abriu a boca e deu uma enorme dentada num dos bolos. Ficou com os lábios cheios de açúcar. Lambeu-os, limpou-os ao guardanapo e bebeu um gole de coca-cola.
Reparou num casal que se encontrava ao lado e a observava como se estivessem a mirar uma obra de arte ou, quiçá, uma aberração. Laura já se habituara a ser observada e forma diferente. Os seus cento e doze quilos funcionavam de atrativo para os olhos espalhados em todos os cantos. Com o passar dos tempos esses olhos deixaram de ter importância. Costumava mesmo brincar com a situação ou então perguntar: “que foi? Nunca viste uma gorda?”. Depois desatava a rir da cara das pessoas. Costumava pensar que era gorda mas alegre.
Farta de estar a ser observada virou-se para o casal.
– Que foi? Nunca viram? – desatou a rir.
Já com a segunda bola de Berlim na mão reparou num grupo de três jovens que parrava pela rua. Uma delas comia uma maçã. Ao passar por um pequeno contentor do lixo atirou a meia maçã que trazia na mão.
– Pindérica… – pensou Laura – com aquele corpo come apenas meia maçãzinha… pode engordar a parva! Por isso tem aquele ar de doente e aquelas pernas magricelas!
Sem se aperceber bem porquê laura começou a sentir-se invadida por uma tristeza. Apercebeu-se que o facto de não ter amigos a obrigava muitas vezes a conversar sozinha, a criar personagens imaginárias para ter com quem desabafar. Gostava de poder ter amigas, de poder passear com elas, ir a discotecas, conversar de rapazes e assim. Afinal era uma rapariga normal com vinte e três anos, apenas tinha uns quilos a mais.
Estava farta de ouvir o pai dizer-lhe para ter cuidado com o que comia, que um dia ainda lhe dava um enfarte. Pior que isso era a indiferença da mãe, parece que já desistira de a chamar à atenção.
Laura queria arranjar um namorado. Comprava revistas e começava a imaginar o seu príncipe encantado. Apesar de saber que era difícil alimentava o sonho de encontrar um homem que a amasse como ela era. Queria casar-se. Estava farta de ter sexo às escondidas com o administrador do condomínio do seu prédio. Só o podia fazer às escondidas, de forma rápida e sempre com medo que a esposa aparecesse. Estava farta de ter sexo nas arrecadações ou na garagem, achava que merecia melhor. Ainda por cima o homem era mais velho que ela cerca de trinta anos e amigo do pai.
Estava farta da forma como as pessoas a olhavam. Sentia-se mal. Apesar do disfarce e das graçolas reconhecia que ninguém a via como um ser humano, apenas como a gorda. O próprio senhor José não a valorizava, apenas a procurava quando andava com os calores. Estava decidida a mudar de vida, ia fazer-se respeitar, queria ser valorizada como pessoa, não ser “a Gorda”.
– Por favor… – chamou pela empregada – era um café e dois pastéis de nata. E aproveite para trazer-me a conta.
Já depois de pagar, tomou o café e quando se preparava para dentar a primeira nata, reparou num mendigo que passava na rua. Ficou estática a olhar para o homem de barbas brancas com o rosto sujo e queimado pelo frio e pelo calor que a rua o obrigava a suportar. Ao passar pelo caixote do lixo o homem pegou na meia maçã que aí tinha sido abandonada e começou a comê-la como que se tratasse do mais sublime manjar dos Deuses. Laura pensou “a magricela partilhou a maçã com este homem”…
Sentiu peso de consciência. Reparou que as coisas não acontecem por acaso. Sentiu-se mal por não se recordar da última vez que tinha partilhado algo com alguém. Perdeu mesmo o apetite, apesar do maravilhoso aspeto dos pastéis de nata.
“Tenho que partilhar” – pensou Laura.
Deixando os bolos no prato, pegou na mala e saiu porta fora.
“Vou ver o que anda a fazer o senhor José” – pensou.
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Imagem: Sérgio Moreira
Texto: Adão Baptista

